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Crônica: Uma palavra com passarinho em cima — João Batista Sousa de Carvalho

Quero deixar bastante explícito o meu transtorno por ter que escrever a palavra vôo sem o circunflexo. Sem ele, a palavra perde a asa. Eu sempre quando a escrevo, capricho no design do acento, como um menino que delicadamente capricha na asa do seu avião de papel. Palavra tem uma camada física que nem as pessoas. A imagem gráfica de uma palavra penetra profundamente nossa memória. Fica tatuada em nossa mente. Seu significado às vezes é associado a essa imagem gráfica. Olho a palavra vôo e vejo no circunflexo um pássaro bailando pelo infinito, sem se importar com a presença do “v” que amedronta como cabo de baladeira ou antena de tv.

Ilustração: Dani Marques

Os dois “oo” são duas montanhas — ou seriam duas ilhas — sobre as quais o passarinho paira suavemente. Voar é uma delícia. E como não nascemos propensos a executar tal ato típico das aves, nós, humanos, preenchemos essa falta brincando de soltar pipas, aviões de papel, balões; alguns até se arriscam em asas-deltas, paraquedas, foguetes… Eu me contento com o vôo das metáforas. Me contento em brincar com as palavras, ouvir suas vibrações e seus silêncios, deixar suas formas insinuarem-se para meu olhar de menino traquina, me lambuzar com seus sabores. Há nas palavras um recheio que preenche o vazio de não poder voar como os pássaros. Algumas se tornam entes da família. Tão íntimas que você quando as escreve parece estar-lhes penteando os cabelos.

O corpo de uma palavra que se torna, assim, tão familiar, é um corpo que você deseja cuidar e amar tal como ele é. Por isso é que não consigo pensar em escrever a palavra vôo sem o seu alado circunflexo. Sem ele, o vôo está incompleto; um vôo com queda escancaradamente anunciada. Sem esta parte, o todo da palavra está fatalmente prejudicado. Questão de metonímia. É que nem uma pessoa que você, quando lembra, lembra logo de uma parte do corpo dela. Você lembra de uma pessoa que tem uma parte dela que diz pelo todo. Então chega uma “ordem” para que você lembre dessa pessoa sem esta parte. E aí, será fácil? Também vale para uma cidade. Tente lembrar do Rio sem o Cristo, de Alcântara sem as Ruínas da Igreja Matriz de São Matias, da cidade de União sem o Morro do urubu…

Eu não consigo nem quero tentar. Quando as Torres gêmeas foram bombardeadas, os Estados Unidos trataram de erguer outras imediatamente. Por quê? Porque a cidade sem as Torres ficaria incompleta. Claro que fizeram questão de erguer outras mais imponentes por razões fáceis de entender. Mas não quero falar disso. Quero apenas dizer que o novo acordo ortográfico da língua portuguesa deixou arruinada a palavra vôo. Minha filha há de perguntar: papai, por que tiraram o passarinho da palavra? E terei que lhe responder: porque parece que somente crianças e poetas enxergam e acham bonito uma palavra com passarinho em cima.

João Batista Sousa de Carvalho

Professor e poeta, de União-PI

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