Sempre estive um passa à frente, porém, com os pés ao chão. Meu pai nasce em 16 de novembro de 1916, a mamãe em 02 de janeiro de 1927. Cresci numa casa onde tive total liberdade. Tudo que quis fazer, fiz. E quando não fiz, foi de comum acordo com meu pai. Desde que não prejudicasse o próximo. A mamãe estava sempre ao meu lado. Fosse o que fosse. Aquilo que só dizia respeito a mim e aos meus, tinha livre arbítrio.
Em 1977, aos 14 anos, resolvi furar a olheira. Não havia máquina para furar olheira para botar brinco, e, muito menos, para furar nariz, sobrancelha para colocar piercing.
Vamos furar! Resolvi. O Olimpo e o Messias pegaram duas pedras de gelo. Botaram na minha orelha direita para anestesiar. Assim, as meninas haviam ensinado. Depois, esterilizaram uma agulha no fogo do fogão. E botaram um pedaço de linha. Depois de furada, deram um nó nas pontas da linha, como se fosse um brinco, e deixei até sarar. Todo dia passava mercúrio duas ou três vezes ao dia. Já estava, mais ou menos, com uns três dias. Enxuta. Fui almoçar com o papai à mesa, pois entre nós não havia segredos e muito menos mentiras. Quando olhou, olhou, olhou, esticou a vista até tocar o órgão. Tensionou o pescoço até onde deu. “Meu filho, tem algo na sua orelha!” Sorri com parcimônia. E argumentei economicamente: Furei a orelha!
Devolveu o sorriso e continuou deliciando-se na cabidela. “Você vai usar mesmo, esse berimbelo?” Estava, neste exato momento, deliciando uma coxa gorda e suculenta. Respondi com outra inquirição: O que o senhor acha? Ele, colhendo um pouco do caldo e duas colheres de pirão, disse-me: “Tire meu filho!” Vi seus olhos brilharem e navegarem em intenso amor e cordialidade. Sem mais delongas. Tirei!
Era 1978, ano de Copa do Mundo. Resolvi fazer uma tatuagem sobre o peito com a face de Nosso Senhor Jesus Cristo. Com tinta aniquim e talo de bambu. Era uma forma rústica e artesanal. Nessa época, não havia essa demanda de tintas coloridas e nem as máquinas, que hoje estão em abundância. Aos montes. O tatuador era o Casaca.
Chego em casa da escola, tiro a roupa para banhar e almoçar. Ligo a televisão e fico bolando sobre o tapete da sala com o Look, meu cachorrinho. Look era o nome de um zagueiro da Seleção Argentina, que admirava seu modo de tocar na bola. Estiloso e elegante.
Quando ele acorda, despois da sua sesta, ainda, estou rolando pelo chão com o Look. Olha para mim e pergunta: “Que mancha é essa no seu peito? Parece uma pancada!” Era o esboço que o velho Casaca tinha rebuscado no meu peito.
É a silhueta do rosto de Jesus para eu fazer uma tatuagem! Respondi.
Coçou a cabeça, reposicionou o óculos sobre o nariz e foi ao banheiro. Passou uma água no rosto e na cabeça. Pegou o pente que colocava num lugar que somente ele alcançava. Havia alguns objetos ou utensílios que ele trazia sempre em reserva: um copo de alumínio enorme que era conservado dia e noite no congelador, o velho pente no qual faltava alguns dentes e o seu revólver calibre 38 que ficava sempre debaixo da sua rede.
Voltou e sentou-se na sua cadeira de espaguete que ficava no terraço no mesmo lugar por vários anos. Puxou um Continental. Acendeu com um isqueiro muito bonito de inox. Deu umas duas ou três baforadas. Olhou para o céu, suspirou. “Meu filho, pegue meu copo d’água!” Sentei-me ao lado dele esperando o copo para levá-lo de volta, enquanto o Look mordia minhas pernas. “Você vai querer usar isso aí mesmo?” Fomos para tribuna, pro púlpito, pros argumentos novamente. Pro debate. Fechou sua argumentação nestes termos: “Meu filho, quando vamos para a Estação do Trem para pegar os malandros que vêm de fora, as pessoas mais visadas, mais abordadas, são as que usam costeletas, ‘mosca’ e tatuagens! Jamais quero ver você sendo parado ou revistado por um policial, porque não lhe criei para isso!” Não fiz.
Passou, passou… caso em julho de 1983. Em 16 de abril 1985, nasce minha Ananda e ele falece em novembro. Meu conselheiro da vida toda. Em 1987, nasce minha Raíssa e passo no certame do BB. Assumo em fevereiro de 1988, em Governador Archer/MA. Continuei com meus movimentos de vanguarda. Raspo minha cabeça pela primeira vez, com barbeador, em Gov. Archer, pois ainda não havia as máquinas elétricas de raspar. Quando cheguei ao banco todo mundo se apavorou. A cidade era muito pequena, mais muito pequena mesmo. A segunda vez foi em União. Por volta de 1992. Mesmo com a cidade fazendo parte da Grande-Teresina, causou frisson na população. Diziam as mulheres que vinham das localidades para receber suas aposentadorias: “Meu Deus, esse rapaz é tão bonito, mas é louco! Como ele faz isso com a cabeça dele!”
Depois tornou moda.
Sempre tive uma larga margem de liberdade. Agora estou à deriva. Perdi meu dois pilares. Na realidade, perdi três pilares: meu irmão Chicão também partiu antes do combinado. Meus gurus agora estão do outro lado da margem do rio. Agora, minha jangada anda à toa…