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Cronicando o Piauí: Voltando no passado

“Esses moços, pobres moços/ Ah, se soubessem o que eu sei/ Não amavam, não passavam, por tudo que já passei”
(Lupicínio Rodrigues)

Na década de 1960, havia um Chafariz comunitário nas cercanias do Colégio Simões Filho. Naquela época, não havia água encanada nos bairros. Era ele que supria todas as necessidades. Pela manhã, as mães iam buscar água pra abastecer os potes, pra lavar as louças, pra lavar as roupas e pra banhar. Os homens traziam os cambos, duas latas de querosene amarradas a um pau, e as mulheres, com uma rudia na cabeça, traziam uma lata. Ficava uma fila enorme. Quem ia chegando, ia colocando a lata na fila. Parecia o formato de uma cobra imensa. Cheia de vértebras coloridas. De acordo com a movimentação, empurravam a lata com o pé. Lá, se tomava conhecimento de tudo que se passou na noite. Falavam pelos cotovelos. Ali, sorriam, gargalhavam. Choravam a perda de algum parente, de algum compadre, de algum amigo, de algum vizinho. Até mesmo, de um desafeto. Ali, se dava parabéns, os pêsames… Como era salutar aquela convivência! Era uma irmandade. Uma família. Transitava-se pelas mesmas vias: chafariz, quitanda, posto de saúde, mercado da Piçarra e a igreja. Aquelas que iam enchendo as latas, os outros ou as outras, iam ajudando a botar o cambo no ombro ou na rudia da cabeça. As idas e vindas, ao chafariz, eram várias, durante o dia. Os horários de pico eram: às 5h, meio-dia e às 17h.

“Há tempo, muito tempo, que estou/ Longe de casa e nestas ilhas cheias de distância/ O meu blusão de couro se estragou” ((Belchior).

Enquanto os pais, que eram mais comedidos no falar, iam botam os papos, as notícias e os fuxicos em dia, nós, a molecada, ficava disputando os vazamentos do canos. Pois eram de ferro. Não havia PVC. E com o tempo e o sol a ferrugem tomava de conta. Assim, ficava cheio de fissuras. Ficávamos pulando e sendo empurrados uns pelos outros. Como a água passava a noite ao relento, de manhã estava estupidamente fria. Era uma festa. Só os meninos. As meninas banhavam em casa. No empurra, empurra, o calção, às vezes, ia parar nos joelhos. Era uma algazarra. Era pura infância pura. Os meninos se encontravam no Chafariz, na escola, na pelada e, nos finais de semana, no catecismo. Eram quase sempre os mesmos. Nos conhecíamos pelo o apelido. Quanto mais você se zangasse com a alcunha, mais pegava. Mais emplacava. A deixa era deixar pra lá. Fazer de conta que não ligava. Não tava nem aí.

“Se o senhor não está lembrado/ Dá licença de contar/ É que ali onde agora está esse edifício alto/ Era uma casa velha, um palacete assombradado” (Demônios da Garoa).

O tempo foi passando. Fomos crescendo. Veio a água encanada(O Chafariz foi esquecido, abandonado). Veio o calçamento(já não jogávamos mais pelada na areia friinha da rua). Veio a luz elétrica(a Usina foi desligada, desativada). Sem perceber, uma parte de nós, estava indo embora. Sorrateiramente, o tempo, com suas vicissitudes, estava nos ludibriando. Enquanto falava de futuro, de desenvolvimento, de progresso, de dias melhores, ia nos matando aos poucos, com nosso consentimento, o que era mais triste. Ordem e Progresso, estampava o nosso estandarte. 1970, copa do mundo:
“Noventa milhões em ação/ Pra frente Brasil/ Salve a seleção… Todos juntos vamos pra frente Brasil, Brasil/ Salve a seleção…”
Brasil campeão…
Abriu-se um leque: vieram os perfumes, cabelo grande, os hippies, radiola, vinil, namoro, sociedade alternativa, tertúlias, piquenique, discoteca, brilhantina, beijos no portão, calça boca-de-sino, calça pantalona, calça de veludo, calça cocota, sapato cavalo-de-aço, sapato bico-fino… participei de tudo. Freneticamente. Porra louca… sempre gostei de cachaça, jamais me entreguei a outras drogas. Mas, nada contra. Gostava da boemia, de paquerar, de beijar, de pinar e de namorar(naquela época, não se transava tão precocemente, quanto hoje). Só depois de muito tempo de namoro, é que ia se ter um pouquinho de liberdade. Era beijar e deslizar a mão sobre o seio, de forma sublime e dissimulada… outras coisas, nem pensar.
Casei, tiver três filhos… agora, estou aos 5.5, mas ainda sinto saudades do “meu” Chafariz.

“Que saudades da professorinha/ Que me ensinou o bê-a-bá/ Onde andarás Mariazinha/ Meu primeiro amor, onde andarás”
(Lupicínio Rodrigues).

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